A Janela

Pedro encontra-se numa rua, da vila branca e caiada, a olhar para uma janela, sobressaída de uma casa, como que fazendo uma espécie de nicho, e para os azulejos de um final de século anterior: molde, cozedura, pintura, vidragem – tudo técnicas manuais, quase primitivas. Desde criança que a sua recordação daquele espaço lhe trazia viva, mas como esbatida na memória, a fachada amarela vidrada, com esta única janela. Gostaria de esboçá-la primeiro num papel, para depois a poder conter toda num molde de gesso e só, então, finalmente, a ver surgir talhada no bloco de pedra. Para já quer apenas reter na memória aqueles tons amarelos, porque a parede da casa, sombreada e iluminada, dá tonalidades diferentes ao magnífico conjunto de azulejaria. Amarelo incandescente, forte, berrante, até terminar num laranja acobreado, no ponto oposto.

A janela saliente ao meio. Caixilho branco, vidros resguardados por uma cortina baça de renda velha. Inteira num formato ogival, agigantava a sua sombra no passeio, até quase ao meio da estrada. Pedro observa agora atentamente a sombra disforme da janela autêntica projetada à sua frente e deseja encher o cérebro com este molde cinzento invertido. Nem mesmo deu conta de que já ali estava parado há imenso tempo – esperava, até a sombra se encontrar completamente distendida, reduplicando de forma aparente a imagem real. Só então se dispôs a seguir caminho. Naquele local não havia perigo de outras pessoas da vila se cruzarem com ele, uma vez que as ruas raramente eram percorridas durante a tarde e muito menos ruas secundárias e sem comércio como aquela. Resolveu regressar.

Até há breves instantes, o sol ainda brilhava lá fora, apagando-se depois, a pouco e pouco, num céu que ia tomando um diferente colorido. O escuro trouxe a noite e a penumbra da casa prolongava propositadamente o silêncio.

Mas há ecos na casa: os passos de Pedro, andando de um lado para o outro no quarto, como um animal enjaulado, sem esperança. O tempo provoca a erosão. Por isso, o seu sonho, carregado de anos longos (entendia agora), não o chegara ainda a concretizar e, cada vez mais, ele surgia como a dor de um sofrimento ou de uma necessidade física que, sempre adiada, o ferira irremediavelmente e o transtornava numa espécie de loucura silenciosa, que ninguém percebe nem compreenderá e que, antes de mais, é ânsia de liberdade de si.

Prendi-o eu, pensa Marisa. Impotente para compreender uma dor e uma revolta solitárias  num ser que apenas procura o seu mundo interior e que, para alcançá-lo, destrói a vida à sua volta, incapaz de encontrar uma combinação certa.

Pedro procura papéis, alguns lápis, quer ficar sozinho. Como sempre, a presença de Marisa, apesar do silêncio em que ela se move e do qual – quase exclusivamente – parece viver, o seu estar ali, debaixo do mesmo teto, inibia-o. Como seria possível ausentar-se da sua presença, não a carregar? Não entende, não imagina sequer. Marisa, para si, representa uma casa cheia de gente. Os seus gestos, a sua espera, os objetos que se movem por suas mãos quebram a onda de concentração.

Por isso, no espaço do quarto, Pedro continua a olhar para um papel vazio. Precisa de sentir que espaço do bloco de pedra deverá esculpir. A janela está toda no seu cérebro – a imagem inteira -, mas para criar a obra (a arte completa) precisa de a sentir no tato, nas mãos, nos dedos que tocarão a superfície lisa e que agarrarão no escopro e no martelo, como embebidos numa pasta de tinta. A hesitação marca o desespero. Não saber por onde começar é quase martírio. E, apesar de tudo, não desespera nem se martiriza. Antes olha sossegadamente o espaço seu, livre, vazio, pronto, mas incompleto.

Pedro compreende que perdeu longos minutos em pensamentos tão distintos do seu objetivo concreto como o dia da noite, o sol da madrugada. É impossível continuar, parece-lhe demasiado cansativo: em suma, não se sente capaz de encontrar uma alma para o molde. É isso, perder a alma é estar vazio, assim como a sua escultura que é, por enquanto, tão só e apenas, uma pedra branca. O seu trabalho, a sua criação física, permanece inerte, estilhaçada em milhares de esboços, que reproduzem incessantemente uma janela disforme, transfigurada. Imagens alucinadas, desdobradas em si mesmas, em fins de tarde irreais.

A pedra continua intacta, suspeitando-se apenas a existência de esboços em folhas de papel amareladas.

Marisa fixa o olhar no céu, agora que é noite, todo azul, todo paz e tranquilidade. Sente pesar sobre si a claridade das estrelas e por isso não consegue sonhar. Recorda apenas pequenos pássaros que correm em círculos no céu. Serão pombos em bando certos? A rapidez com que cruzam o ar e a repetição do percurso parecem ter um significado qualquer. Círculos e movimentos imperfeitos, necessária e propositadamente.

Pedro entra no quarto, onde Marisa, como de costume, já adormeceu. Ainda assim, toca-lhe nos cabelos e sente vontade de a beijar. Mais uma vez não conseguiu iniciar o trabalho e o desejo de sentir Marisa junto de si é grande e poderoso – inevitável.

Sente um perigo sensível nessa aproximação – a película invisível que cerca os seres pode-se quebrar ou pior, a energia, as moléculas, as fibras, os nervos podem-se libertar em forças obrigadas a movimentos próprios, espontâneos e regulares.

O seu corpo aproximou-se enfim do dela: o desejo que sente é próximo a uma dor baixa. Toca-lhe o rosto e sente-a despertar, quando os seus lábios se movem no emaranhado loiro de cabelos soltos pelo leito. Os corpos enlaçam-se. A luz da noite (estrelas e luar) projeta-se sobre Pedro e Marisa, um de cada vez, apenas. A marcação de luzes resulta numa iluminação quente de um palco, como se o espetáculo fosse a vida – eles os dois, amantes nus: os corpos que se violentam, pele azul brilhando, e se mexem em cena, agitados como num jogo ou numa tempestade no céu. De súbito tudo escurece – a forma gigante da janela desdobra-se para dentro do quarto, toca nos corpos imóveis e quentes, que arrefecem. Marisa sente um arrepio, a parte inferior da janela dispersa pelo quarto tocou no seu seio e no seu corpo tudo parece ter gelado num único momento.

Pedro levanta-se. Sai da cama sem mesmo a olhar. E, ao entrar no outro quarto, sente como só o futuro, constantemente presente e ausente, interessa. Tudo o mais são apenas recordações.

A janela, a sua imagem sempre presente - ponte de futuro – era mais do que um desafio que pusesse a si próprio. Sente-se incapaz de voltar à rua, onde vira a sombra projetada – seria o mesmo que confrontar-se com o produto final de uma obra, receava copiá-la, em vez de, como pretendia, a apreender, penetrar nela e ser também: sombra, luz, espaço
.
Era uma relação que transcendia o plano real, pertencendo apenas aos sentidos ocultos que se movem na permanência do que se sente. Como se da janela evocasse fisicamente algo não traduzível de outra forma que não fosse esta, que retorna incessantemente ao seu pensamento: espaço vertical projetado na horizontalidade de uma janela aberta por sobre a realidade.

Sabia agora, no seu íntimo, que, por qualquer razão pouco explicável, seria finalmente capaz de iniciar o seu trabalho: reviu os esboços e preparou os seus instrumentos.

A pedra à sua frente fazia desfilar um rumor de asas brancas a bater e sentia um prazer íntimo ao tocar o pano esticado por sobre ela, a protegê-la, como se este se movesse para si em cadências suaves.

Aos poucos deixa-se flutuar e crê ver já pronto o alto relevo da janela no bloco de pedra – uma forma tridimensional sem movimento – de onde saem duas asas brancas em forma de janela aberta, envolvidas por centenas de azulejos amarelos incandescentes que projetam um incêndio no espaço.

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