Viagem

- Juro que desconheço este lugar. Nunca cá estive. Podes imaginar este mar, estas ondas, a galgarem a muralha e a invadirem a estrada?

Maria não responde logo. Sorri primeiro. Claro, o mar é tão forte, é força viva, é o infinito que se prolonga na noite (quando é noite). Vê-se no mar a flutuar… só a espuma brincará nos seus cabelos. E, da força das ondas, o seu corpo todo desnudado se tingirá de roxos, lilases, cores azuladas e no seu ventre ficará um cheiro crescente a maresia, transportada nas ondas, que perfumará o ar, até criar em si uma ilusão de reflexo suave de vaga.

- O mar é lindo. Ouve o ruído das ondas, o mar a bater. O estrondo é enorme, quando nos chama.

Vibrante nas rochas, ecoa ao largo, como se ameaçasse quebrar a força daquelas barreiras da natureza, a solidez da cintura que envolve o oceano e se debruça sobre o próprio mar. O homem sujeita-a pelos ombros e fá-la rodar lentamente. As mãos ambas deslizam até se juntarem.

Aproximam-se. O mar, o sol, o reflexo do dia em pleno acariciam a terra.

No inverno é assim, o sol vem, queima a pele; recua e gela a alma. Sem sol não renasce a esperança de vida e perdem-se as tardes e as manhãs dos tempos e das estações.
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O homem volta para o carro, sem desprender nunca o olhar das searas imensas que o cercam, e o fazem sonhar, recordando outros espaços, outras gentes. À sua volta tudo esbrasa e queima e parece imensamente seco – numa ausência completa de água. A linha do horizonte é apenas um recorte dourado que desenha o contorno do espaço. A cor (ou a luz) fere a vista.

Coloca os óculos escuros e decide regressar à casa, por entre todas aquelas cores transparentes – raivosas! Mar soprado de margem para margem. Mais azul claro, mais luz. Mais ainda aquela cor de fogo a incendiar a madrugada. E todo o amarelo cândido entumescido na terra rasgada e quente.

O homem deixa a grande estrada de asfalto cinzento. Pegajoso e derretido. Imagina o cheiro a borracha queimada que de facto não sente. De mais a mais com o vento a bater-lhe em cheio na cara. A entrar por si por cada vez que respira. Vento forte. Brisa rija e ardida. Longínqua.

O castanho loiro e amarelo berrante compõem searas de girassóis. Temerários desafiam o vento de olhar posto no sol em brasa. E o céu tão azul claro, tão limpo, doira já. Raios de luz e botões de girassóis, reluzentes, emprestam àquele céu espelhado as cores da noite, que o iluminam.

É preciso fechar os vidros. Terra solta, poeiras, ar. Os grãos minúsculos levantam-se numa dança louca. Giram, batem, rodam.

Perde-se a estrada. Agora, pela frente, o caminho estreito e poeirento. De um dos lados, uma ribanceira. (A pé descia-a num passo largo). Muito à frente, um monte: casa branca caiada. Interior fresco e escuro. Adivinham-se as janelas pequenas, fechadas, o postigo da porta baixa encostado e preso em cima por uma guita. Não há vivalma em redor. Estridente o canto de grilos e cigarras chega até si. Cantadores ao desafio, sem se importarem com o sol.

Só agora a primeira curva no caminho mal rasgado. Também os primeiros homens. Machados nas mãos, profundo ar conhecedor. Olham primeiro a árvore, estudam a sua pele cinzenta, esboroada, rugosa. Insensível. Empinam-se uns nos troncos largos e baixos e com golpes firmes, sabidos, descascam o tronco. A cobertura da árvore sai inteira como uma pele velha de cobra. E os homens empilham depois num espaço aberto a cortiça curva, em bruto, saída da árvore. Estas, libertas da casca grossa (velha de primaveras de maturação), deixam à vista um tronco novo, descoberto: castanho claro e avermelhado.

A estrada tosca alonga-se a cada subida.

O viajante atreve-se a descer um pouco o vidro, agora que não sente tão forte o vento. De imediato, o interior é inundado com o mesmo calor agreste de há pouco. De certo que também entrou poeira solta diluída no ar. O homem não dá por nada, inebriado e solto o corpo àquele filtro invisível e forte.

Passa uma ponte velha. Por baixo, uma poça de água parada. Pouco depois, um grupo de mulheres novas, pernas dentro de água e saias enroladas à cintura. Espigas verdes, altas, por cima das águas, roçam nos chapéus largos que avançam. Todas num ritmo contínuo, a par. Curvadas e húmidas até ao fim da tarde.

O vento parou desde há instantes, o homem nem sentiu. Um halo, estranho e diferente, solta-se da terra e do ar – esquece-se das cores.

O que aconteceu à claridade? De repente parece ter descorado, perdido a força. O homem volta-se no assento: um círculo enorme e disperso de luz (só agora o encara) cai por detrás.

Olha ainda atentamente. Primeiro o sol. Esfera quente. Depois a diagonal transparente, lúcida, dos raios. Corrida em espiral. Diafragma da íris aberto à claridade. Tão depressa… tão rápido… tão de fugida se funde com a terra. Se escoa. Frágil. Impenetrável. Aclareado em cobres e oiros antes de escurecer.

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