O Labirinto

 Artemisa imagina-se num labirinto. Um enorme, vasto retângulo, todo verde e arbustos, de onde o ponto de partida e de chegada sejam metas equidistantes. Meta, para si, um prisioneiro, sem rumo nem orientação fixos.

Assim ficará, dias, horas, procurando resolver o seu problema inventado: de onde vem, aonde quer chegar?

Mistério, duplo mistério: não há regresso sem partida; não há partida sem regresso (que mais não seja o da memória). Uma memória andante. Deambulando por ruas e paisagens desertas. Homens mortos, porque não respondem, casas vazias, frias, pela distância a que estão condenadas. 

          Pensa… talvez… que falta o empurrão, o gesto fácil, simples, que reflete as cores da luz e nos conduz, ao acaso, por entre áleas de pinheiros, azinheiras, oliveiras: pinhão, cortiça, azeite. Fruto e planta. Sinestesia profunda do olhar.   
    
Permanece a ideia do labirinto. Ei-la num ponto intermédio. Não sabe se recue ou se avance. Mas mais vale ir em frente, vencendo medos. Até aonde o verde a deixe navegar. Então a barreira fá-la-á pensar, decidir   um caminho novo. Artemisa não consegue raciocionar – deixa-se deslizar pelos caminhos. Tão impercetíveis são os seus movimentos,  que quase parece não se mexer – o espaço é sempre igual e nele só o pensamento existe, porque é ele que comanda os gestos e a vontade. Julgava o labirinto fácil, de peças ajustadas à sua pequenez, e que se rodavam à altura. São as torres altas demais? São as aves o silêncio noturno da natureza? Não sabe, mas neste caminho não é possível mover as peças e aves não há.

Em frente, só um muro verde; se recua, outro muro verde. Parece pintado, porque as folhas minúsculas e verdes não deixam distinguir o relevo. Só se lhes tocar. Artemisa não se atreve. Qualquer toque pode ser fatal. Lembra-se das estátuas hirtas, que decoram algumas áleas, e pressente que pode ser perigoso, ainda para mais, agora, que a luz começa a perder-se, se é noite. Mas a noite, neste espaço, é mesmo assim, madrugada clara, cheia de estrelas, esperando o acordar do sol, lentamente. Artemisa não poderá avançar mais, sente que está presa entre muros. Se se pudesse elevar, veria a saída e os caminhos. Talvez achasse os pontos certos de passagem. Assim, é impossível. Reconhece que atingiu o ponto limite. Não se atreve a mover da mesma posição. Será também ela uma estátua no caminho?

Ocorre-lhe, então, riscar o chão de areia para assinalar os pontos de passagem nas áleas, não entende como é que ainda não se tinha lembrado disso. Os corredores sempre iguais podiam ser marcados com um tacão de sapato, na terra solta, arenosa, dos caminhos. Artemisa concentra-se. Ainda imóvel, como que espera silenciosamente, sem saber há deveras um trajeto a seguir. Pouco importa, mesmo com as saídas fechadas, a procura é mais importante do que saber se recua ou se avança. Ousa, então, avançar.

Perfeito! Artemisa descobre os caminhos marcados. Agora é só retroceder na procura de outro ponto, de outra estrada. Será possível? Sente uma dor nova no peito. Será o fumo invisível que cerca os caminhos?

Saber qual é o momento certo para virar a esquina ou orientar o passo está cada vez mais difícil. Artemisa encontra os caminhos já percorridos, e só os segue se assim o entender. Alguns ela quer. Apesar de ser tudo verde e vazio, decide-se a recordar; a reaprender cada estrada de chão liso. Outros ela não tenta sequer; acha cansativo. Talvez continue no centro, talvez se aproxime de um ponto exato de escolha. Artemisa pondera sempre antes de se decidir em frente a duas áleas, mas não sabe porque o faz. Mais uma marcação.

Pára, agora de novo, e observa. O espanto não a deixa controlar a emoção e as lágrimas chegam-lhe aos olhos. Vê um caracol, com o tacão ia-o esmagando. O primeiro ser do labirinto (as estátuas não contam) move-se lento e vagaroso. Quando Artemisa quase o atingiu, recolheu-se inteiro na sua carapaça, num movimento de instinto. Pensou fugir, evidentemente. Também ela queria encontrar assim uma concha à sua altura e enchê-la consigo, enroscada como um feto no seu mar de águas suaves e tépidas, balouçando. O caracol é uma esperança. Talvez a saída esteja próxima, talvez este seja, só pode ser, o caminho certo. Agarra o caracol e guarda-o na palma da sua mão. Ao menos, não podendo falar, espera que vença o medo e se habitue à sua pele, mais sedosa do que a areia dos caminhos. Neste descontrolo, Artemisa não marcou aquela avenida estreita. A fé deixou-a acreditar na busca intuitiva de um lugar. Segue sempre em frente e vê-se, outra vez, a escolher ao acaso.

O caracol, agora, faz-lhe companhia, não tornou a sair da sua concha protetora, mas Artemisa pensa que está para breve. Habituou-se ao seu andar cadenciado e aos descansos ligeiros, paragens obrigatórias entre duas áleas, para recuperar alguma noção de espaço, sempre igual e familiar. O tempo é uma medida já ausente de si. A procura não terminou, parece infinita. O caracol, o bom presságio (a gaivota a assinalar costa), foi um engano, mas serve-lhe de consolo nesta travessia, já que está novamente perdida, sem avenidas assinaladas. Artemisa acha que perdeu a vontade de encontrar o caminho e então limita-se a deambular com o caracol na mão, como se esta fosse a sua medida exata da ausência do mundo.

Artemisa cansou-se das avenidas simples e sempre verdes. Apesar do receio de parar, que agora sente, conseguiu arranjar confiança para se sentar no chão, assim como que à espera, e descansar. Pousa o caracol, mas não lhe permite qualquer afastamento. Com medo de o perder, não desprende o olhar dos seus movimentos. Está preso na sua casca, mas percebe que ele é o único ser completamente livre do labirinto: tem terra e erva à sua volta – tudo quanto lhe basta. Talvez possa aprender alguma coisa com ele. Talvez, até, se lhe devolvesse a liberdade e o seguisse, pudesse achar o caminho certo que conduz à saída. Artemisa sonha e quase adormece. Mas desperta e, com um movimento brusco, agarra o caracol com medo que ele fuja – no entanto, talvez que a solução seja apenas sonhar.

No labirinto sempre a espera. Artemisa espera que o caracol se lhe afeiçoe verdadeiramente e espera encontrar uma saída daqueles corredores desconcertantes, que certamente a enlouquecerão, se ela não souber manter o balanço certo dos pensamentos. Artemisa procura, de novo, organizar um esquema de orientação: as marcas são úteis, mas precisa de estabelecer uma dinâmica diferente, que seja impulso e desafio, que a obrigue a pensar, em vez de vaguear sem movimentos controlados.

O casaco de lã apresenta-se como um recurso possível, o único: desmanchá-lo metodicamente, recorrer ao fio de linha que construiu a obra, desfazê-la, e organizar outra. Artemisa procura uma ponta e começa a fazer um novelo. Estivesse ela num deserto de areia, lisa e fina até perder de vista, e não se sentiria tão completamente abandonada e só como ali. Claro, não esquece, tem o caracol, um companheiro casual e que começa a perguntar-se se não o deverá devolver ao seu caminho, à sua vontade de ser e de se achar. Não consegue. Os elos, por mais fortuitos que sejam, são difíceis de quebrar. Por isso, espera, enrolando pacientemente a lã nos dedos da mão esquerda, formando uma pequenina bola que cresce num ritmo regular, em camadas.

É, com certeza, o seu último desafio.

O novelo está pronto. Tem uma forma redonda, ligeiramente elítica. Artemisa resolve prendê-lo num dos arbustos e desenrolar o fio lentamente,e  contorna o primeiro caminho liso de areia. Não pode desperdiçar a linha, com voltas desnecessárias, porque ignora a dimensão do labirinto.

O caracol recolhido todo na concha sai, agora, para a palma da sua mão. Apenas o olha enternecida e sente-se obrigada a avançar em mais este procedimento: nova estratégia, nova esperança.

Um caminho, outro e outro, outro ainda. Artemisa percorre em voltas as áleas e chega sempre, de novo, à ponta do fio. Paciência. Enrola tudo de novo e recomeça.

O terreiro, mais uma vez, encontra-se à sua frente e verifica, enfim, que não há caminho possível de saída. O novelo ora desfeito ora recomposto lembra uma esfera que nunca rodará no ar.

Fixa o olhar em torno e repara: à sua volta, por entre as áleas, dispersas, ao lado das estátuas, estão dezenas de pedras estacionadas no caminho, como se fossem simples marcações na infinitude do espaço a haver.

Artemisa solta o caracol e vê-o deslizar vagarosamente, indiferente ao caminho ou à escolha. Procura, então, uma pedra, quase retangular – um suporte megalítico perfeito – que se ergue por sobre os caminhos e que permanece indiferenciável na geometria simples do labirinto. É esse, afinal, o seu ponto de partida e de chegada.

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