Cresce da treva absoluta o cheiro de uma atmosfera vaga – ansiosa – e percebo que aumenta e se distende por sobre a memória, galvanizada por segundos de repercussões inexatas.
Adormeço, nesta calma, e sinto a trémula imagem que me detém… O homem que me fala, o homem que está nos retratos, que eu seguro nas mãos. E as figuras são estranhas. Um velho de ar rude e camponês, e, ao lado, jovens louros de calções – um grupo alemão, um outro norueguês, vários ingleses. Por detrás das pessoas, apenas o espaço imobilizado: as paredes antigas da igreja, o muro baixo do cemitério, que deixa ver as campas, as pedras e os caminhos limpos, por entre as lajes. No plano mais recuado, o recorte cinzento da muralha no céu.
A imagem move-me, despedaça o meu ser e imobiliza a minha alma. Se houvesse forma de a remover! Se houvera algo com que a alcançar! Ou então, se, única, ela se desfizesse e se esventrasse no ar.
Por momentos a imagem fotográfica cruza-se com o presente e deixa-me perplexo e descrente. Não sei já em que dimensão me movo e apenas percebo as imagens, brevemente perdidas e estranhamente reencontradas, imagens soltas, à deriva no espaço. Tão pouco sei se as descubro ou se são elas que me encontram e se detêm em mim próprio.
Talvez por isso não me surpreenda, quando oiço a fala do homem, como um eco, dispersar-se à minha volta:
- Trouxe uma máquina fotográfica?
Não consigo responder. Penso que seja absurda a pergunta!
O homem, parado à minha frente e simultaneamente solto nas imagens que me cercam, insiste de novo:
- Tem uma máquina para tirar fotografias?
Respondo que não, com estranheza e dificuldade, porque sinto o seu breve desânimo.
- Costumam tirar-me uma fotografia. Uma dessas recebia-a ontem, veja a carta.
Textos de sequências ininteligíveis (falas estranhas) acompanham decerto as imagens. Encaro melhor o homem (o que me olha, o que me fixa do retrato?), como se estivesse a encarar o vento e sinto-o, a ele, que nunca saiu daquele espaço, espalhado em fragmentos pelo mundo – feliz nesta forma única de existir.
Despeço-me e, na calma de um silêncio duradoiro, ocorrem-me as imagens do futuro. Junto à igreja, no interior da muralha do castelo, paredes partilhadas com o cemitério, espaço comum aos vivos e aos mortos, o homem permanecerá. O tempo vivo, na sua progressão selvagem não conseguirá, contudo, alterar a paisagem, sempre a mesma, sempre igual, vista no olhar do homem, livre no papel. Algumas árvores novas plantadas, outras derrubadas ou carcomidas pelas intempéries ou pelos anos, pessoas velhas do lugar, que permanecem ou que regressarão. E, de entre as gentes e o espaço, ele será o homem que tem por único ofício ser memória futura dos forasteiros, em trânsito breve.
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