O som irrompe por detrás da cortina e é como um chamamento, todo contido na música que avança sem se deter. Imensamente, os sons e o silêncio abarcam a totalidade do espaço livre da sala e nele permanecem, enquanto eco de um estranho desejo de si mesmos. A mulher, ouvinte, sonha-se na música e sente irreprimível a vontade, incontroláveis os movimentos. Deve procurar, mas a sala é imensa e fria! Olha em volta, desvendando o espaço. Sabe, tão somente, que a música a fascina e que, certo que acabe, aquele momento será o seu único infinito – para sempre presente em pensamentos, que formarão os seus sonhos futuros. Procura, então, pela sala, ao acaso; tropeça nas filas de cadeiras, onde os espectadores, indiferentes, parecem alheios à pressão da música. Afasta-se deles e percorre os corredores laterais. Quase no limite da sala, regressa e sobe os degraus que levam ao palco. Sente-se arrastada de dentro de si mesma, como se toda a sabedoria se concentrasse no inevitável conhecimento dos sons.
Subitamente, por detrás da cortina transparente, vê o pianista que voa, suspenso no ar, enquanto faz soar a música. Por qualquer estranho mistério, os acordes espalhados pela sala dispersaram os sons magicamente. Cada um deles repete-se autonomamente e acaricia o corpo da mulher, antes de explodir em milhares de partículas luminosas, que deixam solto pelo espaço um brilho incandescente. A mulher acompanha a dança dos sons, apercebendo-se, agora, que eles se despedaçam. Vê toda a sala já doirada – um brilho ofuscante, que cria uma dimensão de permanência infinita na ausência absoluta do espaço e do tempo.
O músico regressou ao piano. Deixou de estar suspenso a meio metro do solo e as suas mãos percorrem firmemente o teclado, libertando de novo as melodias. A mulher aproxima-se até quase lhe tocar, sentindo o calor, a respiração, o som dos movimentos do músico na energia que se solta das suas mãos. Apercebe-se, por momentos, ser inebriante um aroma esmaecente que paira no ar. Como se da música se libertassem forças vivas, que se esgotam a si mesmas, antes de explodirem em luz. Naquela meia penumbra em que se encontram, são apenas momentaneamente iluminados, parecendo estarem presos no vazio dos mundos como duas silhuetas, vagas e efémeras, quase irreais. O pianista ou a mulher começam a falar e as palavras, que talvez não sejam mais do que pensamentos, evoluem de um para o outro ininterruptamente.
Palavras, essas também, tocadas pela magia do som que transfigurou o espaço. Ao mesmo tempo que fala, o pianista continua a tocar e a mulher sente que o significado de todas as coisas se condensa nos movimentos do corpo do homem sentado ao piano, libertando da música os sons. O pianista prossegue, explicando o compasso, o ritmo, a força, a intensidade. De súbito, bruscamente, o pianista pára e estremece como arrepiado. Interrompida a música, os sons, que pairavam prestes a explodirem, tombam no chão e não chegam a brilhar. A neblina doirada, espalhada pela sala, permanece contudo no silêncio feito da suspensão da música. Então, o pianista segura uma das mãos da mulher e diz-lhe apenas «-Vem». A sua voz é suave e harmoniosa e exprime desejo e emoção. O olhar da mulher sorri num imenso brilho doirado – e não veem mais do que um e outro, perdidos na luz do espaço que, agora, impercetivelmente, começa a esbranquecer, sustentada ainda nos reflexos de oiro.
Despem-se lentamente, sem nunca desprenderem o olhar, até ficarem completamente nus. As mãos correm a pele, esparsamente iluminada de oiro, e parecem olhar-se num espelho. Cada um olha o outro, vendo apenas o reflexo próprio, como se um único corpo fossem. A mulher corre-lhe os dedos pelos cabelos loiros compridos, sedosamente macios, e pensa acariciar-se a si mesma. O pianista sente o seu olhar no dela, os seus pensamentos nos seus, a sua força, a sua ânsia e o seu desejo nela também. Mergulham profundamente na imensa luz da sala, distantes dos olhares da assistência, presa, como morta, na posição de espectadora.
Conforme se desvanece totalmente a poeira doirada, o espaço é inundado por uma súbita luz branca, densa, que ascende, até desaparecer no interior da sala. Quase ao mesmo tempo que a luz apoteótica se esgota, o público desperta e aplaude, num gesto mecânico e grotesco. No centro do palco, o pianista permanece levitado no espaço e com o olhar sorri, num imenso brilho doirado.
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