Nota Inicial


        Reler (e reescrever) um conjunto de textos é sempre um desafio. Escritos em 1997, representam um passado já distante de mim; de quem, hoje, eu sou, no momento presente. Contudo, não enjeito estes textos e trago-os de novo à claridade.

Em cada um deles, «Mecânica Breve» (a reflexão sobre o sentido do som e do silêncio primordiais), «Enigma» (o impulso erótico), «Labirinto» (a perceção aguda de que na existência, para o homem, não há verdadeiramente um caminho que se possa escolher), «Turismo» (a permanência e a impermanência no espaço e no tempo), «Viagem» (as impressões sobre uma paisagem antes do escurecer), «A Janela» (um olhar sobre o ato da criação artística), «As Três Mulheres» (o fim e o recomeço como dinâmicas do universo), há uma experiência de escrita e há também um radicalismo de início e de descoberta face ao indizível, ou, melhor dizendo, face àquilo que é a sombra/luz da própria vida.

Deverão, por isso, ser lidos nessa margem de iniciação incipiente de quem não procura senão uma verdade, que, como tudo na vida, pode e deve e merece ser plural.

Mecânica Breve

        Só o silêncio é memória.

            O pensamento é a corda mansa do cérebro.

            Reinventadas, a fala, a voz são recriações imperfeitas do que é mais rápido.

            Indizível…

         A bobina do pensamento. A gravação desfaz o som: avança, pára, volta atrás, recomeça. E, neste procedimento técnico, os sons    reajustam-se deformados, em cada metro de fita, até não serem mais do que fragmentos descontínuos, ininteligíveis, presos na estrutura física.

          Um a um projetam-se, alongam-se no espaço, até ganharem a altura de elevação necessária para se libertarem do domínio da gravidade do planeta, contida na fita.

            Aí permanecem, conduzidos, em suspensão móvel, por sobre os espaços povoados.

           O movimento prossegue continuado… não havendo mais sons, repete-se a sequência inicial da gravação.

            Tudo regressa de novo ao princípio.

            Um princípio perfeito no espaço. Solto, perene, inesgotado.

            O mesmo e sempre repetido e sempre recuperado.

            Criar o som…

            …imaginá-lo…

            …sustê-lo suspenso…

            …sem cálculos matemáticos…

            Dar-lhe um pensamento.

            Dar-lhe também uma vontade.

            Dar-lhe um poder imenso de se construir…

            Ou, mais simplesmente, de se libertar das leis físicas, até ser devorado pela máquina solar.

            Ritual de fogo e chamas.

            Purificável e renovador.

Enigma

   O som irrompe por detrás da cortina e é como um chamamento, todo contido na música que avança sem se deter. Imensamente, os sons e o silêncio abarcam a totalidade do espaço livre da sala e nele permanecem, enquanto eco de um estranho desejo de si mesmos. A mulher, ouvinte, sonha-se na música e sente irreprimível a vontade, incontroláveis os movimentos. Deve procurar, mas a sala é imensa e fria! Olha em volta, desvendando o espaço. Sabe, tão somente, que a música a fascina e que, certo que acabe, aquele momento será o seu único infinito – para sempre presente em pensamentos, que formarão os seus sonhos futuros. Procura, então, pela sala, ao acaso; tropeça nas filas de cadeiras, onde os espectadores, indiferentes, parecem alheios à pressão da música. Afasta-se deles e percorre os corredores laterais. Quase no limite da sala, regressa e sobe os degraus que levam ao palco. Sente-se arrastada de dentro de si mesma, como se toda a sabedoria se concentrasse no inevitável conhecimento dos sons.

            Subitamente, por detrás da cortina transparente, vê o pianista que voa, suspenso no ar, enquanto faz soar a música. Por qualquer estranho mistério, os acordes espalhados pela sala dispersaram os sons magicamente. Cada um deles repete-se autonomamente e acaricia o corpo da mulher, antes de explodir em milhares de partículas luminosas, que deixam solto pelo espaço um brilho incandescente. A mulher acompanha a dança dos sons, apercebendo-se, agora, que eles se despedaçam. Vê toda a sala já doirada – um brilho ofuscante, que cria uma dimensão de permanência infinita na ausência absoluta do espaço e do tempo.

            O músico regressou ao piano. Deixou de estar suspenso a meio metro do solo e as suas mãos percorrem firmemente o teclado, libertando de novo as melodias. A mulher aproxima-se até quase lhe tocar, sentindo o calor, a respiração, o som dos movimentos do músico na energia que se solta das suas mãos. Apercebe-se, por momentos, ser inebriante um aroma esmaecente que paira no ar. Como se da música se libertassem forças vivas, que se esgotam a si mesmas, antes de explodirem em luz. Naquela meia penumbra em que se encontram, são apenas momentaneamente iluminados, parecendo estarem presos no vazio dos mundos como duas silhuetas, vagas e efémeras, quase irreais. O pianista ou a mulher começam a falar e as palavras, que talvez não sejam mais do que pensamentos, evoluem de um para o outro ininterruptamente.

         Palavras, essas também, tocadas pela magia do som que transfigurou o espaço. Ao mesmo tempo que fala, o pianista continua a tocar e a mulher sente que o significado de todas as coisas se condensa nos movimentos do corpo do homem sentado ao piano, libertando da música os sons. O pianista prossegue, explicando o compasso, o ritmo, a força, a intensidade. De súbito, bruscamente, o pianista pára e estremece como arrepiado. Interrompida a música, os sons, que pairavam prestes a explodirem, tombam no chão e não chegam a brilhar. A neblina doirada, espalhada pela sala, permanece contudo no silêncio feito da suspensão da música. Então, o pianista segura uma das mãos da mulher e diz-lhe apenas «-Vem». A sua voz é suave e harmoniosa e exprime desejo e emoção. O olhar da mulher sorri num imenso brilho doirado – e não veem mais do que um e outro, perdidos na luz do espaço que, agora, impercetivelmente, começa a esbranquecer, sustentada ainda nos reflexos de oiro.

            Despem-se lentamente, sem nunca desprenderem o olhar, até ficarem completamente nus. As mãos correm a pele, esparsamente iluminada de oiro, e parecem olhar-se num espelho. Cada um olha o outro, vendo apenas o reflexo próprio, como se um único corpo fossem. A mulher corre-lhe os dedos pelos cabelos loiros compridos, sedosamente macios, e pensa acariciar-se a si mesma. O pianista sente o seu olhar no dela, os seus pensamentos nos seus, a sua força, a sua ânsia e o seu desejo nela também. Mergulham profundamente na imensa luz da sala, distantes dos olhares da assistência, presa, como morta, na posição de espectadora.

            Conforme se desvanece totalmente a poeira doirada, o espaço é inundado por uma súbita luz branca, densa, que ascende, até desaparecer no interior da sala. Quase ao mesmo tempo que a luz apoteótica se esgota, o público desperta e aplaude, num gesto mecânico e grotesco. No centro do palco, o pianista permanece levitado no espaço e com o olhar sorri, num imenso brilho doirado.



O Labirinto

 Artemisa imagina-se num labirinto. Um enorme, vasto retângulo, todo verde e arbustos, de onde o ponto de partida e de chegada sejam metas equidistantes. Meta, para si, um prisioneiro, sem rumo nem orientação fixos.

Assim ficará, dias, horas, procurando resolver o seu problema inventado: de onde vem, aonde quer chegar?

Mistério, duplo mistério: não há regresso sem partida; não há partida sem regresso (que mais não seja o da memória). Uma memória andante. Deambulando por ruas e paisagens desertas. Homens mortos, porque não respondem, casas vazias, frias, pela distância a que estão condenadas. 

          Pensa… talvez… que falta o empurrão, o gesto fácil, simples, que reflete as cores da luz e nos conduz, ao acaso, por entre áleas de pinheiros, azinheiras, oliveiras: pinhão, cortiça, azeite. Fruto e planta. Sinestesia profunda do olhar.   
    
Permanece a ideia do labirinto. Ei-la num ponto intermédio. Não sabe se recue ou se avance. Mas mais vale ir em frente, vencendo medos. Até aonde o verde a deixe navegar. Então a barreira fá-la-á pensar, decidir   um caminho novo. Artemisa não consegue raciocionar – deixa-se deslizar pelos caminhos. Tão impercetíveis são os seus movimentos,  que quase parece não se mexer – o espaço é sempre igual e nele só o pensamento existe, porque é ele que comanda os gestos e a vontade. Julgava o labirinto fácil, de peças ajustadas à sua pequenez, e que se rodavam à altura. São as torres altas demais? São as aves o silêncio noturno da natureza? Não sabe, mas neste caminho não é possível mover as peças e aves não há.

Em frente, só um muro verde; se recua, outro muro verde. Parece pintado, porque as folhas minúsculas e verdes não deixam distinguir o relevo. Só se lhes tocar. Artemisa não se atreve. Qualquer toque pode ser fatal. Lembra-se das estátuas hirtas, que decoram algumas áleas, e pressente que pode ser perigoso, ainda para mais, agora, que a luz começa a perder-se, se é noite. Mas a noite, neste espaço, é mesmo assim, madrugada clara, cheia de estrelas, esperando o acordar do sol, lentamente. Artemisa não poderá avançar mais, sente que está presa entre muros. Se se pudesse elevar, veria a saída e os caminhos. Talvez achasse os pontos certos de passagem. Assim, é impossível. Reconhece que atingiu o ponto limite. Não se atreve a mover da mesma posição. Será também ela uma estátua no caminho?

Ocorre-lhe, então, riscar o chão de areia para assinalar os pontos de passagem nas áleas, não entende como é que ainda não se tinha lembrado disso. Os corredores sempre iguais podiam ser marcados com um tacão de sapato, na terra solta, arenosa, dos caminhos. Artemisa concentra-se. Ainda imóvel, como que espera silenciosamente, sem saber há deveras um trajeto a seguir. Pouco importa, mesmo com as saídas fechadas, a procura é mais importante do que saber se recua ou se avança. Ousa, então, avançar.

Perfeito! Artemisa descobre os caminhos marcados. Agora é só retroceder na procura de outro ponto, de outra estrada. Será possível? Sente uma dor nova no peito. Será o fumo invisível que cerca os caminhos?

Saber qual é o momento certo para virar a esquina ou orientar o passo está cada vez mais difícil. Artemisa encontra os caminhos já percorridos, e só os segue se assim o entender. Alguns ela quer. Apesar de ser tudo verde e vazio, decide-se a recordar; a reaprender cada estrada de chão liso. Outros ela não tenta sequer; acha cansativo. Talvez continue no centro, talvez se aproxime de um ponto exato de escolha. Artemisa pondera sempre antes de se decidir em frente a duas áleas, mas não sabe porque o faz. Mais uma marcação.

Pára, agora de novo, e observa. O espanto não a deixa controlar a emoção e as lágrimas chegam-lhe aos olhos. Vê um caracol, com o tacão ia-o esmagando. O primeiro ser do labirinto (as estátuas não contam) move-se lento e vagaroso. Quando Artemisa quase o atingiu, recolheu-se inteiro na sua carapaça, num movimento de instinto. Pensou fugir, evidentemente. Também ela queria encontrar assim uma concha à sua altura e enchê-la consigo, enroscada como um feto no seu mar de águas suaves e tépidas, balouçando. O caracol é uma esperança. Talvez a saída esteja próxima, talvez este seja, só pode ser, o caminho certo. Agarra o caracol e guarda-o na palma da sua mão. Ao menos, não podendo falar, espera que vença o medo e se habitue à sua pele, mais sedosa do que a areia dos caminhos. Neste descontrolo, Artemisa não marcou aquela avenida estreita. A fé deixou-a acreditar na busca intuitiva de um lugar. Segue sempre em frente e vê-se, outra vez, a escolher ao acaso.

O caracol, agora, faz-lhe companhia, não tornou a sair da sua concha protetora, mas Artemisa pensa que está para breve. Habituou-se ao seu andar cadenciado e aos descansos ligeiros, paragens obrigatórias entre duas áleas, para recuperar alguma noção de espaço, sempre igual e familiar. O tempo é uma medida já ausente de si. A procura não terminou, parece infinita. O caracol, o bom presságio (a gaivota a assinalar costa), foi um engano, mas serve-lhe de consolo nesta travessia, já que está novamente perdida, sem avenidas assinaladas. Artemisa acha que perdeu a vontade de encontrar o caminho e então limita-se a deambular com o caracol na mão, como se esta fosse a sua medida exata da ausência do mundo.

Artemisa cansou-se das avenidas simples e sempre verdes. Apesar do receio de parar, que agora sente, conseguiu arranjar confiança para se sentar no chão, assim como que à espera, e descansar. Pousa o caracol, mas não lhe permite qualquer afastamento. Com medo de o perder, não desprende o olhar dos seus movimentos. Está preso na sua casca, mas percebe que ele é o único ser completamente livre do labirinto: tem terra e erva à sua volta – tudo quanto lhe basta. Talvez possa aprender alguma coisa com ele. Talvez, até, se lhe devolvesse a liberdade e o seguisse, pudesse achar o caminho certo que conduz à saída. Artemisa sonha e quase adormece. Mas desperta e, com um movimento brusco, agarra o caracol com medo que ele fuja – no entanto, talvez que a solução seja apenas sonhar.

No labirinto sempre a espera. Artemisa espera que o caracol se lhe afeiçoe verdadeiramente e espera encontrar uma saída daqueles corredores desconcertantes, que certamente a enlouquecerão, se ela não souber manter o balanço certo dos pensamentos. Artemisa procura, de novo, organizar um esquema de orientação: as marcas são úteis, mas precisa de estabelecer uma dinâmica diferente, que seja impulso e desafio, que a obrigue a pensar, em vez de vaguear sem movimentos controlados.

O casaco de lã apresenta-se como um recurso possível, o único: desmanchá-lo metodicamente, recorrer ao fio de linha que construiu a obra, desfazê-la, e organizar outra. Artemisa procura uma ponta e começa a fazer um novelo. Estivesse ela num deserto de areia, lisa e fina até perder de vista, e não se sentiria tão completamente abandonada e só como ali. Claro, não esquece, tem o caracol, um companheiro casual e que começa a perguntar-se se não o deverá devolver ao seu caminho, à sua vontade de ser e de se achar. Não consegue. Os elos, por mais fortuitos que sejam, são difíceis de quebrar. Por isso, espera, enrolando pacientemente a lã nos dedos da mão esquerda, formando uma pequenina bola que cresce num ritmo regular, em camadas.

É, com certeza, o seu último desafio.

O novelo está pronto. Tem uma forma redonda, ligeiramente elítica. Artemisa resolve prendê-lo num dos arbustos e desenrolar o fio lentamente,e  contorna o primeiro caminho liso de areia. Não pode desperdiçar a linha, com voltas desnecessárias, porque ignora a dimensão do labirinto.

O caracol recolhido todo na concha sai, agora, para a palma da sua mão. Apenas o olha enternecida e sente-se obrigada a avançar em mais este procedimento: nova estratégia, nova esperança.

Um caminho, outro e outro, outro ainda. Artemisa percorre em voltas as áleas e chega sempre, de novo, à ponta do fio. Paciência. Enrola tudo de novo e recomeça.

O terreiro, mais uma vez, encontra-se à sua frente e verifica, enfim, que não há caminho possível de saída. O novelo ora desfeito ora recomposto lembra uma esfera que nunca rodará no ar.

Fixa o olhar em torno e repara: à sua volta, por entre as áleas, dispersas, ao lado das estátuas, estão dezenas de pedras estacionadas no caminho, como se fossem simples marcações na infinitude do espaço a haver.

Artemisa solta o caracol e vê-o deslizar vagarosamente, indiferente ao caminho ou à escolha. Procura, então, uma pedra, quase retangular – um suporte megalítico perfeito – que se ergue por sobre os caminhos e que permanece indiferenciável na geometria simples do labirinto. É esse, afinal, o seu ponto de partida e de chegada.

Turismo

Cresce da treva absoluta o cheiro de uma atmosfera vaga – ansiosa – e percebo que aumenta e se distende por sobre a memória, galvanizada por segundos de repercussões inexatas.

Adormeço, nesta calma, e sinto a trémula imagem que me detém… O homem que me fala, o homem que está nos retratos, que eu seguro nas mãos. E as figuras são estranhas. Um velho de ar rude e camponês, e, ao lado, jovens louros de calções – um grupo alemão, um outro norueguês, vários ingleses. Por detrás das pessoas, apenas o espaço imobilizado: as paredes antigas da igreja, o muro baixo do cemitério, que deixa ver as campas, as pedras e os caminhos limpos, por entre as lajes. No plano mais recuado, o recorte cinzento da muralha no céu.

A imagem move-me, despedaça o meu ser e imobiliza a minha alma. Se houvesse forma de a remover! Se houvera algo com que a alcançar! Ou então, se, única, ela se desfizesse e se esventrasse no ar.

Por momentos a imagem fotográfica cruza-se com o presente e deixa-me perplexo e descrente. Não sei já em que dimensão me movo e apenas percebo as imagens, brevemente perdidas e estranhamente reencontradas,  imagens soltas, à deriva no espaço. Tão pouco sei se as descubro ou se são elas que me encontram e se detêm em mim próprio.

Talvez por isso não me surpreenda, quando oiço a fala do homem, como um eco, dispersar-se à minha volta:

- Trouxe uma máquina fotográfica?

Não consigo responder. Penso que seja absurda a pergunta!

O homem, parado à minha frente e simultaneamente solto nas imagens que me cercam, insiste de novo:

- Tem uma máquina para tirar fotografias?

Respondo que não, com estranheza e dificuldade, porque sinto o seu breve desânimo.

- Costumam tirar-me uma fotografia. Uma dessas recebia-a ontem, veja a carta.

Textos de sequências ininteligíveis (falas estranhas) acompanham decerto as imagens. Encaro melhor o homem (o que me olha, o que me fixa do retrato?), como se estivesse a encarar o vento e sinto-o, a ele, que nunca saiu daquele espaço, espalhado em fragmentos pelo mundo – feliz nesta forma única de existir.

Despeço-me e, na calma de um silêncio duradoiro, ocorrem-me as imagens do futuro. Junto à igreja, no interior da muralha do castelo, paredes partilhadas com o cemitério, espaço comum aos vivos e aos mortos, o homem permanecerá. O tempo vivo, na sua progressão selvagem não conseguirá, contudo, alterar a paisagem, sempre a mesma, sempre igual, vista no olhar do homem, livre no papel. Algumas árvores novas plantadas, outras derrubadas ou carcomidas pelas intempéries ou pelos anos, pessoas velhas do lugar, que permanecem ou que regressarão. E, de entre as gentes e o espaço, ele será o homem que tem por único ofício ser memória futura dos forasteiros, em trânsito breve.

Viagem

- Juro que desconheço este lugar. Nunca cá estive. Podes imaginar este mar, estas ondas, a galgarem a muralha e a invadirem a estrada?

Maria não responde logo. Sorri primeiro. Claro, o mar é tão forte, é força viva, é o infinito que se prolonga na noite (quando é noite). Vê-se no mar a flutuar… só a espuma brincará nos seus cabelos. E, da força das ondas, o seu corpo todo desnudado se tingirá de roxos, lilases, cores azuladas e no seu ventre ficará um cheiro crescente a maresia, transportada nas ondas, que perfumará o ar, até criar em si uma ilusão de reflexo suave de vaga.

- O mar é lindo. Ouve o ruído das ondas, o mar a bater. O estrondo é enorme, quando nos chama.

Vibrante nas rochas, ecoa ao largo, como se ameaçasse quebrar a força daquelas barreiras da natureza, a solidez da cintura que envolve o oceano e se debruça sobre o próprio mar. O homem sujeita-a pelos ombros e fá-la rodar lentamente. As mãos ambas deslizam até se juntarem.

Aproximam-se. O mar, o sol, o reflexo do dia em pleno acariciam a terra.

No inverno é assim, o sol vem, queima a pele; recua e gela a alma. Sem sol não renasce a esperança de vida e perdem-se as tardes e as manhãs dos tempos e das estações.
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O homem volta para o carro, sem desprender nunca o olhar das searas imensas que o cercam, e o fazem sonhar, recordando outros espaços, outras gentes. À sua volta tudo esbrasa e queima e parece imensamente seco – numa ausência completa de água. A linha do horizonte é apenas um recorte dourado que desenha o contorno do espaço. A cor (ou a luz) fere a vista.

Coloca os óculos escuros e decide regressar à casa, por entre todas aquelas cores transparentes – raivosas! Mar soprado de margem para margem. Mais azul claro, mais luz. Mais ainda aquela cor de fogo a incendiar a madrugada. E todo o amarelo cândido entumescido na terra rasgada e quente.

O homem deixa a grande estrada de asfalto cinzento. Pegajoso e derretido. Imagina o cheiro a borracha queimada que de facto não sente. De mais a mais com o vento a bater-lhe em cheio na cara. A entrar por si por cada vez que respira. Vento forte. Brisa rija e ardida. Longínqua.

O castanho loiro e amarelo berrante compõem searas de girassóis. Temerários desafiam o vento de olhar posto no sol em brasa. E o céu tão azul claro, tão limpo, doira já. Raios de luz e botões de girassóis, reluzentes, emprestam àquele céu espelhado as cores da noite, que o iluminam.

É preciso fechar os vidros. Terra solta, poeiras, ar. Os grãos minúsculos levantam-se numa dança louca. Giram, batem, rodam.

Perde-se a estrada. Agora, pela frente, o caminho estreito e poeirento. De um dos lados, uma ribanceira. (A pé descia-a num passo largo). Muito à frente, um monte: casa branca caiada. Interior fresco e escuro. Adivinham-se as janelas pequenas, fechadas, o postigo da porta baixa encostado e preso em cima por uma guita. Não há vivalma em redor. Estridente o canto de grilos e cigarras chega até si. Cantadores ao desafio, sem se importarem com o sol.

Só agora a primeira curva no caminho mal rasgado. Também os primeiros homens. Machados nas mãos, profundo ar conhecedor. Olham primeiro a árvore, estudam a sua pele cinzenta, esboroada, rugosa. Insensível. Empinam-se uns nos troncos largos e baixos e com golpes firmes, sabidos, descascam o tronco. A cobertura da árvore sai inteira como uma pele velha de cobra. E os homens empilham depois num espaço aberto a cortiça curva, em bruto, saída da árvore. Estas, libertas da casca grossa (velha de primaveras de maturação), deixam à vista um tronco novo, descoberto: castanho claro e avermelhado.

A estrada tosca alonga-se a cada subida.

O viajante atreve-se a descer um pouco o vidro, agora que não sente tão forte o vento. De imediato, o interior é inundado com o mesmo calor agreste de há pouco. De certo que também entrou poeira solta diluída no ar. O homem não dá por nada, inebriado e solto o corpo àquele filtro invisível e forte.

Passa uma ponte velha. Por baixo, uma poça de água parada. Pouco depois, um grupo de mulheres novas, pernas dentro de água e saias enroladas à cintura. Espigas verdes, altas, por cima das águas, roçam nos chapéus largos que avançam. Todas num ritmo contínuo, a par. Curvadas e húmidas até ao fim da tarde.

O vento parou desde há instantes, o homem nem sentiu. Um halo, estranho e diferente, solta-se da terra e do ar – esquece-se das cores.

O que aconteceu à claridade? De repente parece ter descorado, perdido a força. O homem volta-se no assento: um círculo enorme e disperso de luz (só agora o encara) cai por detrás.

Olha ainda atentamente. Primeiro o sol. Esfera quente. Depois a diagonal transparente, lúcida, dos raios. Corrida em espiral. Diafragma da íris aberto à claridade. Tão depressa… tão rápido… tão de fugida se funde com a terra. Se escoa. Frágil. Impenetrável. Aclareado em cobres e oiros antes de escurecer.

A Janela

Pedro encontra-se numa rua, da vila branca e caiada, a olhar para uma janela, sobressaída de uma casa, como que fazendo uma espécie de nicho, e para os azulejos de um final de século anterior: molde, cozedura, pintura, vidragem – tudo técnicas manuais, quase primitivas. Desde criança que a sua recordação daquele espaço lhe trazia viva, mas como esbatida na memória, a fachada amarela vidrada, com esta única janela. Gostaria de esboçá-la primeiro num papel, para depois a poder conter toda num molde de gesso e só, então, finalmente, a ver surgir talhada no bloco de pedra. Para já quer apenas reter na memória aqueles tons amarelos, porque a parede da casa, sombreada e iluminada, dá tonalidades diferentes ao magnífico conjunto de azulejaria. Amarelo incandescente, forte, berrante, até terminar num laranja acobreado, no ponto oposto.

A janela saliente ao meio. Caixilho branco, vidros resguardados por uma cortina baça de renda velha. Inteira num formato ogival, agigantava a sua sombra no passeio, até quase ao meio da estrada. Pedro observa agora atentamente a sombra disforme da janela autêntica projetada à sua frente e deseja encher o cérebro com este molde cinzento invertido. Nem mesmo deu conta de que já ali estava parado há imenso tempo – esperava, até a sombra se encontrar completamente distendida, reduplicando de forma aparente a imagem real. Só então se dispôs a seguir caminho. Naquele local não havia perigo de outras pessoas da vila se cruzarem com ele, uma vez que as ruas raramente eram percorridas durante a tarde e muito menos ruas secundárias e sem comércio como aquela. Resolveu regressar.

Até há breves instantes, o sol ainda brilhava lá fora, apagando-se depois, a pouco e pouco, num céu que ia tomando um diferente colorido. O escuro trouxe a noite e a penumbra da casa prolongava propositadamente o silêncio.

Mas há ecos na casa: os passos de Pedro, andando de um lado para o outro no quarto, como um animal enjaulado, sem esperança. O tempo provoca a erosão. Por isso, o seu sonho, carregado de anos longos (entendia agora), não o chegara ainda a concretizar e, cada vez mais, ele surgia como a dor de um sofrimento ou de uma necessidade física que, sempre adiada, o ferira irremediavelmente e o transtornava numa espécie de loucura silenciosa, que ninguém percebe nem compreenderá e que, antes de mais, é ânsia de liberdade de si.

Prendi-o eu, pensa Marisa. Impotente para compreender uma dor e uma revolta solitárias  num ser que apenas procura o seu mundo interior e que, para alcançá-lo, destrói a vida à sua volta, incapaz de encontrar uma combinação certa.

Pedro procura papéis, alguns lápis, quer ficar sozinho. Como sempre, a presença de Marisa, apesar do silêncio em que ela se move e do qual – quase exclusivamente – parece viver, o seu estar ali, debaixo do mesmo teto, inibia-o. Como seria possível ausentar-se da sua presença, não a carregar? Não entende, não imagina sequer. Marisa, para si, representa uma casa cheia de gente. Os seus gestos, a sua espera, os objetos que se movem por suas mãos quebram a onda de concentração.

Por isso, no espaço do quarto, Pedro continua a olhar para um papel vazio. Precisa de sentir que espaço do bloco de pedra deverá esculpir. A janela está toda no seu cérebro – a imagem inteira -, mas para criar a obra (a arte completa) precisa de a sentir no tato, nas mãos, nos dedos que tocarão a superfície lisa e que agarrarão no escopro e no martelo, como embebidos numa pasta de tinta. A hesitação marca o desespero. Não saber por onde começar é quase martírio. E, apesar de tudo, não desespera nem se martiriza. Antes olha sossegadamente o espaço seu, livre, vazio, pronto, mas incompleto.

Pedro compreende que perdeu longos minutos em pensamentos tão distintos do seu objetivo concreto como o dia da noite, o sol da madrugada. É impossível continuar, parece-lhe demasiado cansativo: em suma, não se sente capaz de encontrar uma alma para o molde. É isso, perder a alma é estar vazio, assim como a sua escultura que é, por enquanto, tão só e apenas, uma pedra branca. O seu trabalho, a sua criação física, permanece inerte, estilhaçada em milhares de esboços, que reproduzem incessantemente uma janela disforme, transfigurada. Imagens alucinadas, desdobradas em si mesmas, em fins de tarde irreais.

A pedra continua intacta, suspeitando-se apenas a existência de esboços em folhas de papel amareladas.

Marisa fixa o olhar no céu, agora que é noite, todo azul, todo paz e tranquilidade. Sente pesar sobre si a claridade das estrelas e por isso não consegue sonhar. Recorda apenas pequenos pássaros que correm em círculos no céu. Serão pombos em bando certos? A rapidez com que cruzam o ar e a repetição do percurso parecem ter um significado qualquer. Círculos e movimentos imperfeitos, necessária e propositadamente.

Pedro entra no quarto, onde Marisa, como de costume, já adormeceu. Ainda assim, toca-lhe nos cabelos e sente vontade de a beijar. Mais uma vez não conseguiu iniciar o trabalho e o desejo de sentir Marisa junto de si é grande e poderoso – inevitável.

Sente um perigo sensível nessa aproximação – a película invisível que cerca os seres pode-se quebrar ou pior, a energia, as moléculas, as fibras, os nervos podem-se libertar em forças obrigadas a movimentos próprios, espontâneos e regulares.

O seu corpo aproximou-se enfim do dela: o desejo que sente é próximo a uma dor baixa. Toca-lhe o rosto e sente-a despertar, quando os seus lábios se movem no emaranhado loiro de cabelos soltos pelo leito. Os corpos enlaçam-se. A luz da noite (estrelas e luar) projeta-se sobre Pedro e Marisa, um de cada vez, apenas. A marcação de luzes resulta numa iluminação quente de um palco, como se o espetáculo fosse a vida – eles os dois, amantes nus: os corpos que se violentam, pele azul brilhando, e se mexem em cena, agitados como num jogo ou numa tempestade no céu. De súbito tudo escurece – a forma gigante da janela desdobra-se para dentro do quarto, toca nos corpos imóveis e quentes, que arrefecem. Marisa sente um arrepio, a parte inferior da janela dispersa pelo quarto tocou no seu seio e no seu corpo tudo parece ter gelado num único momento.

Pedro levanta-se. Sai da cama sem mesmo a olhar. E, ao entrar no outro quarto, sente como só o futuro, constantemente presente e ausente, interessa. Tudo o mais são apenas recordações.

A janela, a sua imagem sempre presente - ponte de futuro – era mais do que um desafio que pusesse a si próprio. Sente-se incapaz de voltar à rua, onde vira a sombra projetada – seria o mesmo que confrontar-se com o produto final de uma obra, receava copiá-la, em vez de, como pretendia, a apreender, penetrar nela e ser também: sombra, luz, espaço
.
Era uma relação que transcendia o plano real, pertencendo apenas aos sentidos ocultos que se movem na permanência do que se sente. Como se da janela evocasse fisicamente algo não traduzível de outra forma que não fosse esta, que retorna incessantemente ao seu pensamento: espaço vertical projetado na horizontalidade de uma janela aberta por sobre a realidade.

Sabia agora, no seu íntimo, que, por qualquer razão pouco explicável, seria finalmente capaz de iniciar o seu trabalho: reviu os esboços e preparou os seus instrumentos.

A pedra à sua frente fazia desfilar um rumor de asas brancas a bater e sentia um prazer íntimo ao tocar o pano esticado por sobre ela, a protegê-la, como se este se movesse para si em cadências suaves.

Aos poucos deixa-se flutuar e crê ver já pronto o alto relevo da janela no bloco de pedra – uma forma tridimensional sem movimento – de onde saem duas asas brancas em forma de janela aberta, envolvidas por centenas de azulejos amarelos incandescentes que projetam um incêndio no espaço.

As Três Mulheres

A figura escapou ao contorno do lápis e o brilho dos cristais esbate o desenho da silhueta. Será um sonho com estilhaços de asas? A dimensão é pequena e a extensão da forma aparece fragilizada.
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A primeira mulher avançou e dominou o grupo. Ergueu o tronco e meneou a voz à altura das cabeças, que escutavam em volta. Falou e envolveu-as em palavras de estranhas sonoridades, como se a fala fora de si acabada de nascer. De seguida, suavemente, em formas que se ritualizam, desprendeu o manto, cobrindo-as em silêncio com o pano branco e pesado de burel. Sob este, a claridade emerge difundindo as cores – permanentes e imóveis.

A segunda mulher ergue-se do círculo. Volteia o corpo e move-se quase impercetivelmente de forma a escurecer a primeira figura. Os gestos sucedem-se em movimentos alargados e aumenta o campo em torno – tanto quanto, com o vento, passando por sob o pano, os cabelos se soltam e afastam descontroladamente. Nas mãos firmes agarra o manto (que a primeira figura lançara) e fá-lo percorrer no espaço, recriando as cores. Todas lhe mexem e o passam entre si, até ficar amarelecento e corrompido no suor que o gasta.

Sem o pano a protegê-las, não suportam o vento nem a carícia do sol nem a limpidez da chuva e perde-se a fixidez das cores. Por isso se arrastam todas, em vão, de encontro à terra.



Impassível, a terceira mulher desprende-se do solo. Segura numa mão um molho de ervas secas e na outra dois paus. Deposita o conteúdo no chão e envolve tudo com o manto gasto e esfarrapado. Esfrega os paus com força por entre as mãos e sopra devagar até fazer saltar o fogo. Nele os corpos deixam-se alastrar… até nada mais haver para além da neblina – criada pela cinza e pelo vento – pronta a desenhar uma nova figura.